Jogos de vídeo, uma perspectiva de esquerda

porPedro Celestino

03 de setembro 2022 - 22:49
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Os jogos de vídeo, com todo o real deslumbre e maravilhas que proporcionam, infelizmente, também escondem algumas das piores ideias políticas dos nossos tempos. Está na altura da esquerda levar a luta para as ruas virtuais dos jogos.

Os jogos de vídeo são praticamente omnipresentes na nossa cultura sendo a maior industria de entretenimento (em termos financeiros). E é fácil de perceber porquê. Existe uma quantidade imensa de pessoas a jogar, cerca de 2 em cada 5 pessoas no mundo (isto é, 2.95 biliões de pessoas)1 que chegam a jogar uma média de 13h horas por semana2. E, apesar de algumas tendências predominantes, genericamente está bem distribuído nas habituais categorias demográficas, incluindo a faixa etária3.

Não é difícil perceber o apelo dos jogos, permitem horas de divertimento e desafios, mas também são capazes de nos transportar para outros mundos e dar-nos experiências que nunca teríamos, sendo um meio de partilha tanto com quem está sentado ao nosso lado como com quem está do outro lado do mundo. Fazem-no com um deslumbramento estético impressionante enquanto contam histórias a par de qualquer outro meio, por vezes, de uma forma extremamente educativa e culturalmente relevante. Mais ainda, são um meio privilegiado para a criatividade ou para criação auto-reflexiva que, muitas vezes, está fora do alcance de muita gente.

Algo com tanta implementação social e de forma tão heterogénea tem necessariamente um impacto forte nessa mesma população a nível cultural e, obviamente, político. Os jogos de vídeo para lá de entretenimento podem ser uma poderosíssima ferramenta de comunicação e de divulgação de ideias. Todos os jogos, inclusive os de tabuleiro, têm esta possibilidade. De facto, o popular Monopólio deriva de um jogo semelhante, criado por Lizzie Magie, com o objectivo de expor problemas do capitalismo4, especificamente os de monopólios e de impostos de taxa única (hoje defendido por partidos como a Iniciativa Liberal, donde se poderia pensar que talvez devessem passar mais tempo a brincar apenas uns com os outros e não a “brincar” com a sociedade em geral).

Admitidamente, os jogos de vídeo tem maior potencial de fazer esta transmissão de ideias. Tanto podem ser uma bem sucedida ferramenta de recrutamento para o exército dos EUA (“America’s Army5, de certa forma substituído por outros como o Call Of Duty e semelhantes) ou ser uma forma de experimentar aventuras na pele de alguém pertencente à comunidade LGBT (“Tell Me Why6, entre tantos outros7). Podem ser usados como propaganda, ou como activismo político declarado (por exemplo, com mensagens anti-guerra, como o “September 12th8 ou o “Spec Ops: The Line9). Nada de exclusivo aos jogos: a literatura, o cinema, ou os cartoons também podem ter o mesmo propósito. No entanto, o que parece inegável é que, politicamente, com a excepção do ocasional passa-culpa em episódios de violência (que no passado já foram imputados ao cinema ou à musica rock)10 a política raramente olha para os jogos. Nem como instrumento político nem como componente cultural. Sejam as formas mais informais de activismo que raramente têm os meios necessários (com rara excepções como o supramencionado September 12th, ou na campanha do Bernie Sanders11), seja interesse demonstrado pela política formal de partidos ou instituições nacionais.

Olhemos especificamente para Portugal, mais atrasado do que outros países. O IVA dos jogos é o mesmo do dos restantes produtos (21%) ao invés daquele que é aplicado aos restantes produtos culturais (6%), apesar de, claramente, dever ser considerado um objecto cultural. Apoios para a criação de jogos de vídeo são inexistentes (e incluí-los no actual orçamento, quase invisível, destinado à cultura seria, no mínimo, trágico para todas as partes), apesar de economicamente até ser uma ideia potencialmente interessante, capaz de ajudar a diversificar a nossa economia e exportações. Seria de pensar que uma das maiores indústrias do planeta tivesse algum suporte, ou pelo menos, algum apoio para expandir culturalmente o país através dos meios mais importantes a nível mundial, mas não.

Enquanto a política, em quase todos os países democráticos do mundo, se mantem alheia aos jogos, a indústria dos mesmo pratica algumas das piores práticas capitalistas, que impõem a/os jogadora/es. Alguns jogos, especialmente os chamados mobile, são financiados através de anúncios predatórios fornecidos pela google e afins. Outros são sustentados por práticas que provêm directamente dos jogos de azar, como as “caixas de loot”, em que a/o jogador compra uma caixa com diversos objectos virtuais, mas sem saber que objectos contêm. Se se parece com a raspadinha ou com slots machines não é por acaso, afinal, são basicamente a mesma coisa. Mas, entretanto, jovens que não têm idade para entrar num casino ou comprar uma raspadinha habituam-se rapidamente a este costume e outros semelhantes. A certa altura, os tribunais belgas trataram-nas como tal12. Infelizmente, é excepção em vez de norma, não que isso coíba de utilizar todos os truques possíveis para (tal como a Google ou o Facebook) manterem os jogadores viciados nos jogos. Escândalos de assédio sexuais são demasiados para sequer valer a pena listá-los, e no meio disto tudo as empresas sentem-se no direito de pura e simplesmente cortar o acesso aos jogos que as pessoas compraram. Felizmente, a controvérsia (por enquanto) foi suficiente para reverter a intenção neste caso13 14. E, também felizmente, os NFT ainda não conseguiram implementação significativa nos jogos. Esperemos que esse dia não chegue.

Do lado da produção de jogos, muitas vezes revê-se o pior que o mercado tem a oferecer aos seus trabalhadores e trabalhadoras, como lucros recorde seguidos de despedimentos em massa15. Ou a prática comum de obrigar trabalhadores a trabalhar muitas e muitas horas extraordinárias, até sem remuneração, o que recebeu a sua própria designação de “Crunch”16, tal o poder do patronato sobre aquela que é uma massa de trabalhadores largamente precária a nível mundial, e com extremas dificuldades de sindicalização e auto organização.

Além disto, criou-se toda uma industria desportiva e de competição que pratica as mesmas más práticas sem regulação alguma, e a nível de jogadores profissionais vemos repetirem-se demasiadas vezes ligas exclusivamente masculinas ou femininas e raramente equipas mistas (quando tal é possível), sem que, aparentemente, exista alguma razão ou desculpa física que se possa dar. Sim, historicamente, as mulheres tiveram (e ainda têm) nos jogos um ambiente muito mais tóxico e agressivo que os homens, tal como menos “apoio” ou “compreensão” social para se dedicarem aos mesmo. Além de que duas ligas potencialmente rendem mais lucros (do que apenas uma liga) aos seus “patrocinadores” (que incluem grandes empresas e clubes como o PSG). Talvez ainda não saibamos tudo o que é necessário para dar uma resposta final sobre o assunto, mas por outro lado, o interesse do mercado e da “cultura gaming” parecem pouco interessados em descobrir.

Deste pequeno resumo do “estado da arte” penso que podemos retirar algumas conclusões.

Primeiro, os jogos deviam ter o devido estatuto, importância cultural e política que lhes é devida. Infelizmente, não são, de todo, reconhecidos pela política formal ou informal, talvez nem pela cultura no geral. Para além de reconhecimento, em Portugal, mereciam apoio à produção, e, na generalidade dos países, a educação no uso e consumo e regulamentação para proteger quem joga.

Segundo, existem graves problemas numa indústria que toca uma imensidão da população, especialmente nos países do norte global. E, infelizmente, esta é, muitas vezes, fundada em alguns dos piores instintos do capitalismo, quer do lado laboral de quem produz, quer do lado de quem consome e joga. Problemas esses que precisam urgentemente de ser resolvidos e necessitam da atenção da política e da força dos estados e instituições para serem resolvidos.

Terceiro, existe toda uma quantidade de gente, por vezes muito isolada e quase alienada, a quem os meios tradicionais de propaganda política estão longe de alcançar, especialmente no espectro da esquerda. Infelizmente, alguma da direita, especialmente a extrema direita, teve porta aberta para se desenvolver nas áreas mais recônditas da internet, tantas vezes escudada pelos jogos e por aquilo que inicialmente era um mercado quase exclusivo de homens brancos e cis, que se veio a espelhar numa “cultura gaming” demasiadas vezes tóxica, pouco diversa, sexista, racista, homofóbica e preconceituosa das mais variadas maneiras. É uma comunidade cada vez mais acostumada ao pior do mercado livre a funcionar, e sem acesso a uma perspectiva sócio-económica diferente à qual se possam agarrar.

Este último ponto penso que é terreno que a esquerda deveria explorar e tentar encontrar formas de chegar a estas pessoas, muitas delas jovens e presas fáceis para ideias neoliberais ou piores. Os jogos de vídeo podem ser, e alguns são, uma coisa maravilhosa. No entanto, têm problemas gravíssimos em largos sectores da sua existência. Penso que é necessário que a esquerda reconheça em quem joga um potencial eleitorado e, fora de um eventual eleitorado, uma população que também precisa de atenção e proteção política. Felizmente, penso que no Bloco de Esquerda já começamos este caminho, mas ainda falta muito para percorrer.

Os jogos de vídeo, com todo o real deslumbre e maravilhas que proporcionam, infelizmente, também escondem algumas das piores ideias políticas dos nossos tempos. Está na altura da esquerda levar a luta para as ruas virtuais dos jogos.

10Admitidamente a questão aqui é mais complexa, mas desnecessária para o argumento).

Pedro Celestino
Sobre o/a autor(a)

Pedro Celestino

Licenciado e mestrando em Filosofia pela Universidade de Lisboa
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